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A História da imagem
2015

``Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que
seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro.``
Albert Camus


A exposição foi pensada para evidenciar a completa guinada que artistas de todas as partes puderam dar, e agora desfrutar, sobre a natureza da criação em pintura. Dizer que, no retorno da pintura nos anos 80, depois de sua suposta morte nos anos 70, todas as vertentes modernas foram pulverizadas em suas certezas e seus ``ismos`` já não é suficiente para compreender a complexidade das modificações, bem como a ampliação da possibilidade de alcance de novos sentidos, que vem sendo possível verificar nesse campo hoje.

Criar é extrair do nada, algo que não existia antes. Interessa a criação em si. Seja ela resultado de um poder inerente da espécie, ou ainda, resultado de um poder especial, autoatribuído pelo sujeito denominado artista. Em cada caso, poderá envolver tanto sonho como pesadelo, desejo, devaneio, lembrança, sublimação, redenção, purificação, resgate ou mesmo salvação, dependendo do histórico psíquico ou emocional gerador da necessidade de criar. De toda forma, não importa o motivo, sempre caberá ao artista a tarefa de realizar síntese, concentrar conteúdo e transformar, alterando, assim, as noções comuns para além dos valores padronizados.

Há intenção. Algo a fazer, que implica seleção e decisão conduzindo escolhas e desistências. A criação compreende uma série de etapas encadeadas, desse modo, o desejo inicial deverá ser informado e o artista rastreará um modo, como quem arquiteta um plano mental para realizar seu intento. Nesse momento, poderá optar por uma linguagem que já domina ou se arriscar num terreno novo a fim de desenvolver método ou sistema inédito que garanta poder alcançar a imagem ou o objeto idealizado. No passo seguinte, o inconsciente se sobrepõe ao racional, e toda sorte de associações poéticas é evocada, como num embaralhar de cartas antes de organizá-las para o jogo. Essa consulta despropositada admite possibilidades múltiplas, que surgem de forma anti-hierárquica e repletas de subjetividade. Então, com sorte, já num estágio avançado do processo, o artista eventualmente vislumbrará solução. e o pensamento criativo o conduzirá a uma forma fechada, à completude, ao ícone. O que acontecia até então no âmbito mental tomará forma através da ação, materializando-se em escala, cor e número.

A despeito da imagem final, das características do objeto e da técnica empregada para produzi-lo, interessa o processo criativo que o gerou. O percurso mental, a história da imagem, que traz as referências do universo particular de onde provém. Esses processos podem surgir associados a métodos intuitivos, carregados de particularidades ligadas a histórias pessoais. Afetivos, podem se basear em memórias de conforto, na projeção de mundos ideais, com imagens dramatizadas, como numa encenação teatral, ou podem estar ligados a proposições racionalizadas como, por exemplo, a da criação deliberada de um conflito para sua posterior resolução. Referências, muitas vezes, advêm de áreas paralelas, migram da arquitetura, com seus elementos geométricos, das vistas em perspectiva. Influências podem vir também da moda e de estilos, como o antigo ``moderno`` e daquilo que hoje é moderno ``de novo``, agora percebido na velocidade, no movimento, no tecnológico.

O que se observa aqui, como principal mudança na forma de criar imagens em pintura, é justamente a importância que o processo de fazê-las passou a ter. Há um reforço na questão da atitude do artista e no rastro do pensamento formativo, que imanta a imagem e completa a ideia. A atitude que se evidencia é a de escolher um recorte específico e de se envolver em busca de uma solução legitimadora, que não obedece nenhuma regra que não seja aquela criada pelo próprio artista. Aspectos puramente formais ou técnicos, no sentido de qualquer academia ou norma para o uso de tintas, telas e materiais, estão totalmente descartados. Ainda que se possa lançar mão de técnicas tradicionais, como óleo sobre tela, esse uso estará condicionado a uma necessidade intrínseca da imagem.

Verifica-se um evidente ganho de liberdade que, por um lado, só torna a tarefa mais desafiadora. Por outro lado, percebe-se agora uma aproximação clara do processo de criação em pintura com o de qualquer outra linguagem, como, por exemplo, performance, escultura, vídeo, instalação. Poderíamos, assim, classificar o momento como sendo o do ``império da atitude`` onde coabitam o artista sincero, o arte-póvera, o arquiteto, o designer, o filósofo, o tecnológico e mesmo o louco; todos conectados pela investigação em pintura. Fazem da imagem bidimensional seu campo de desenvolvimento artístico, pautam tempo e ritmo, insistem e desistem, e esse é o assunto. Qual é a história, a referência, o que vai se mostrar, o que vai ser ocultado; de todas as maneiras, o que se evidencia hoje é o feixe particular de escolhas, a unicidade das imagens enquanto registro, enquanto testemunho.

Uma vez soltas das paredes do ateliê, inicia-se a etapa final, que é a da comunicação. As pinturas saem para o mundo, onde serão relacionadas, possivelmente contextualizadas, encontrando maior ou menor grau de aderência. Passando, desse modo, a pertencer ao imaginário das pessoas e a fazer parte do singular universo das coisas inventadas.

Leda Catunda, São Paulo, 2015

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