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Euforia
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Certo dia, um amigo artista e excelente pintor, me chamou a atenção para um acréscimo de intensidade das cores nas floradas das árvores da cidade. Valendo-se do super-poder de sua visão aguçada, de pupilas treinadas por muitos anos de dedicação à pintura, para enxergar toda tonalidade e temperatura das cores, ainda que sem o respaldo das verdades cientificamente comprovadas, afirmava que as cores das flores estavam bem mais fortes agora. O motivo, seria uma reação das plantas à má qualidade do ar em São Paulo. Seu argumento era de que o aumento de intensidade das cores das flores, acontecia por uma reação da natureza, como uma defesa, para manter a atração dos pássaros, abelhas e morcegos, os polinizadores, frente a densa camada de poluição, a qual infelizmente nos acostumamos a respirar na maior parte dos grandes centros urbanos do mundo.

Seu argumento foi convincente. E realmente, o contraste entre o verde escuro das folhas com os amarelos, rosas e roxos, vermelhos e laranjas das flores parecia mesmo mais forte nas temporadas recentes com relação ao das primaveras de antigamente. Aceitando por tanto essa nova realidade como um sinal importante de mudança, diga-se de passagem, uma mudança para pior, coloca-se a questão: qual seria então a reação humana para as ameaças à nossa permanência como espécie sobre o planeta? Ameaças como a da pandemia de Covid 19, que se impôs globalmente de uma forma súbita, dramática e trágica como um tsunami. Depois, intuitivamente pensando em seguida, sob o ponto de vista especifico do sujeito artista, qual seria o papel da arte diante da intensidade de realidades como essas de pragas, de doenças e das guerras?

Parece que o mais apropriado seria o artista continuar realizando o registro de seu tempo através de sua trajetória. O que de fato já vem sendo o percurso natural de toda arte e de todo artista que, mesmo diante da incerteza da intenção no momento em que se dá a criação, contribui com esse aspecto memorável que é testemunhar e repertoriar os anseios e desejos de sua época.
Registros temporais são inerentes à toda criação refletindo valores, tecnologia e o gosto da sociedade da época e do lugar onde surgiu e existiu a pessoa criadora. O tempo no qual o artista está inserido, é um fator que não se pode mudar. Não sendo possível um adiantamento ou aceleração que o transporte para uma realidade futura e por tanto desconhecida, uma realidade que pode no máximo ser intuída. Ainda que muitos sejam visionários, mesmo assim, respondem aos anseios e antevisões de sua própria época e do ideário ao qual pertencem. Bem como não é possível retornar ao passado, adotando valores de uma realidade que já não pulsa mais, motivo pelo qual por exemplo, não podemos mais ser um “impressionista” no século XXI, infelizmente. O artista e sua poética pertencem a seu tempo, contextualiza-se no momento, isto é inalterável.

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A obra Gotas transparentes foi criada no período de isolamento experimentado por todos nós nos anos de 2020/21. Mesmo esta exposição estava justamente prevista pra acontecer naquele momento. O abrupto cancelamento dos eventos programados e a completa suspenção de socialização, proporcionaram a rara experiência de trabalhar no ateliê, num tempo ilimitado, de dias sem fim e horas alongadas. Assim, foi possível pensar com calma numa coleção de imagens para uma peça em grande escala, investindo num material precário, mas muito atraente que é o plástico laminado. Tendo em mente a imagem da grande janela do ICA, que proporciona uma quantidade luz que se difunde generosamente por todo o espaço da sala, surgiu a idéia de projetar sobras coloridas sobre as demais obras da exposição tirando partido das qualidades de tecidos e plásticos transparentes. Pronta, pode ser lida como uma imensa colagem, na forma de gotas entrelaçadas flutuando sobre o chão como uma cortina, podendo ser vista dos dois lados.

O conjunto de imagens foi surgindo em grande parte por apropriação de imagens encontradas prontas, já impressas no material. Uma vez somadas, passaram a apresentar uma visualidade onírica e tropical com palmeiras, muitas flores, rios, praias e até onças pintadas. Desta maneira, essa obra, realizada com todo tempo do mundo e ao mesmo tempo durante a experiencia de suspensão de tudo, foi se tornando algo entre a projeção de um ideal de futuro e o registro de uma memória. Feita para guardar as lembranças das vivencias do que passou a ser chamado de “antigo normal” e também para se tornar uma espécie de depositário de esperanças de um novo horizonte ideal. Um futuro no qual, quem sabe, possamos ser capazes de encontrar para todo o mal a cura.

Paira sobre esse conjunto de gotas entrelaçadas um espirito que possui pouco apresso à verdade em favor da pura invenção. Concentrado nesta que foi a obra inicial da exposição, posteriormente expandiu seu alcance igualmente para as outras obras. Sobrevém do aspecto anti-hierárquico que caracteriza os processos de colagem. Assim, para além da tropicalidade, traz essa visualidade que busca em parte responder ao excesso de tudo nos rodeia, que nos cerca, de uma tal forma que fica difícil escapar ou abstrair. Tudo o que nos é dado a ver constantemente, tal como um bombardeamento, indo desde o colorido das ruas, dia e noite, passando pelas cores do carnaval brasileiro, mas refere-se sobretudo à miscelânea visual e auditiva que nos proporcionam as redes sociais.

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A intenção inicial era a de criar um conjunto de obras que possuísse um sentido aberto. Elaborando modos construtivos a partir de uma estrutura pensada para cada pintura-objeto, processo esse, que vem cada vez mais resultando num caráter escultórico e instalativo das peças. No entanto, algo que se destaca neste agrupamento de obras é um certo colorido exagerado de rosas e roxos, vermelhos e dourados. Uma coloração exagerada decorrente talvez, do estado eufórico observado pela ansiedade sobre a restauração da normalidade. Um estado provocado pela percepção da possibilidade de retorno ao antigo normal, com toda a intensidade da vida tal como a vivemos neste século. Onde experenciamos um cotidiano exigente que ao mesmo tempo nos seduz com sua velocidade vertiginosa.

Uma euforia que se reflete aqui pelo exagero das cores fortes, talvez então, como a intensidade percebida no contraste das flores nas arvores, que tem seu colorido aumentado para assegurar a manutenção de sua existência. No caso das obras, uma euforia manifestada como tentativa de garantir um futuro que se assemelhe ao passado. E simultaneamente uma forma de registro da memória recente, para não esquecer do que houve antes e por fim saber como chegamos até aqui.

Leda Catunda

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